Por Vania Souza

publicado em Clássicos

Quantas pessoas já ouviram a nova geração afirmar que o único carro nacional que existiu foi o Fiat 147? Eu já ouvi inúmeras vezes essa barbaridade, que na verdade demonstra falta de informação e ciência da realidade. É mais provável que os desinformados estejam confundindo o modelo citado com o Gurgel, que por ser compacto lembrava o modelo da marca italiana. A diferença é que a Gurgel sim era uma empresa com capital 100% nacional, cujo fundador, o engenheiro mecânico e eletricista formado pela USP, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, exerceu em sua totalidade toda a capacidade criativa e industrial que o Brasil possui, em um dos momentos econômicos e políticos mais difíceis do país.

Nas décadas de 70 e 80 a empresa foi pioneira em muitos temas, como a própria iniciativa de industrialização do país, através da criação de sua indústria de bens de consumo em 1976, quando ficaram proibidas as importações de carros no país. Outros projetos também inovadores e apresentados pela Gurgel foram os carros supercompactos e próprio projeto do carro elétrico e popular.

A empresa se desenvolvia em meio a um momento de efervescência política e econômica no país, nasceu no fim da ditadura, passou pela retomada da democracia ao país e ainda suportou o baque da era Collor. A empresa ia bem e seus veículos foram sucessos de vendas até 1988, fase em que recebia incentivo fiscal do governo e tornava seus veículos mais baratos que os da concorrência. Porém, em 1990, o governo decidiu isentar de IPI veículos com capacidade menor de 1000 cilindradas. Foi quando a Fiat com seu Uno Miller, superior em desempenho e conforto, em relação ao Gurgel, começou a desbancar nosso produto nacional. A fábrica brasileira tentou e não conseguiu empréstimo junto ao BNDES e nem investidores para a construção de uma fábrica, e muito menos nenhum Estado se interessou em assumir a dívida.

Nossa primeira, e até então única, fábrica de carros brasileiros não suportou sozinha a concorrência, e mesmo tentando reagir lançando o Supermini, não conseguiu ultrapassar a centenária marca Italiana e acabou em 1992 entrando em concordata e em 1995 falindo. Certamente, não só o produto Gurgel BR 800 devem ser reverenciados, mas também e principalmente, seu criador, que com coragem e ousadia visionária deu um passou adiante no avanço industrial independente de nosso país.

A Era BR 800

A fabricante nacional Gurgel até 1987, basicamente se dedicava sua produção a veículos utilitários. Em setembro desse mesmo ano a empresa decidiu dar mais um passo adiante, lançando seu primeiro carro compacto com conceito econômico e popular com motor 1300 e 1600 divididos em dois cilindros, um de 650 e outro de 800 centímetro cúbico.

No início o veículo fruto desse propósito chamava-se Gurgel 280, e apresentava a versão sedã e outra com capota removível. Logo em seguida o projeto evoluiu e a fabricante decidiu dedicar somente ao motor de 0,8 litro com refrigeração a água e potência de 26 ou 32 cv. O nome do novo lançamento remetia a capacidade do motor, sendo batizado de BR 800. Um dos grandes destaques no projeto é que o motor desse modelo, que era de fundido em liga de alumínio-silício, qual também foi totalmente estudado e desenvolvido pela própria Gurgel em solo brasileiro. E não parava por aí o sistema de ignição também era outra patente da Gurgel. Tanta inovação e tecnologia em uma fábrica recém nascida retirou elogios de grandes fabricantes mundiais de automóvel.

O carro seria lançado em opções 280 S ("S" de sedan), e 280 M ("M" de múltiplo), com capota removível - restariam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR 800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa. Este motor foi inteiramente pesquisado e desenvolvido pela Gurgel no Brasil, e ainda contou com elogios de marcas consagradas, como a Porsche, Volvo, Citroën e vários especialistas em motores.

E quem pensa que os notáveis diferenciais do Gurgel 800 param por aí, está enganado, o pequeno também contava com ignição controlada por microprocessador, e o veículo dispensava distribuidor, o que era possível pelo fato do disparo ser simultâneo em ambos cilindros, nesse caso a empresa se inspirou nos motores da Citroën. O motor sem reverência conseguia chegar a 6000 rpm sem flutuar a válvula. Seu sistema refrigerado a água mostrava ótimo desempenho, e o possante alcançava 117 km/h. No afã de alcançar um motor com maior facilidade de manutenção o idealizador do modelo projetou um que dispensasse a correia trapezoidal para acionar os acessórios. Porém dificuldades com a potencia do motor bipartido e descarga de bateria fez com que o intento não prosseguisse, continuando assim a modo de produção convencional.

Mesmo sendo um modelo compacto, o BR 800 proporcionava certo conforto e ainda conseguia carregar 200 kg de carga, sendo de 650 kg seu peso. Um dos seus pontos a serem melhorados eram os vidros corrediços que reduzia a corrente de ar dentro do automóvel. Também não era dos mais agradáveis o porta-malas, ao qual se tinha acesso pelo vidro traseiro em formato basculante, o que não oferecia facilidade de acesso ao espaço. Mesmo não sendo um sistema agradável era preferido ao de acesso ao compartimento por dentro do veículo, semelhantemente ao que ocorre com o fusca. Entre os pontos tecnicamente positivos, está o estepe que ficava alocado externamente, protegido por uma proteção na parte detrás do veículo.

Comercialmente o ponto positivo, sem dúvida, era o preço mais competitivo em relação aos concorrentes e a praticidade que a nova modalidade compacta, aliada ao conforto médio, trazia aos consumidores. O diferencial do preço era possível pois a fábrica tinha o “apoio” do governo, que concedeu à Gurgel redução no IPI, ficando esta obrigada a pagar apenas 5% do imposto, enquanto os concorrentes estrangeiros desembolsavam 25% a mais, conforme a cilindrada. Mesmo que o projeto da fabricante nacional saísse maior que o previsto, ainda ela teria um automóvel cerca de 30% mais barato que os da mesma modalidade de seus concorrentes.

Inicialmente, em 1988, para se comprar um Gurgel 800, era necessário também comprar um lote de ações da fabricante, qual em 1989 já tinha rendido ágio de 100%. O sucesso foi tal que foram vendidos 10.000 lotes das ações. Mas esse movimento que demonstrava excelente aceitação pelos consumidores teve seu fim quando justamente começava a se consolidar um império de produção de veículos genuinamente nacional. Estamos falando do ano de 1990, quando o governo, na tentativa de incrementar o emprego, a evolução tecnológica no país, por meio da abertura comercial, qual trouxe novas indústrias multinacionais e consequentemente modificações na política fiscal, fez com que as pequenas indústrias brasileiras não suportassem concorrer em igualdade com grandes fabricantes estrangeiros, que já há anos contavam com tecnologia e capacidade de produção superior. Esses fatores, e principalmente, a igualdade de tratamento fiscal dada à industrial nacional, nesse caso a Gurgel, é que fez com que essa sucumbisse ante a potente e tradicional Fiat com seu compacto Uno Miller, que prometia o mesmo preço com mais conforto e desempenho. Sem falar das outras que se seguiram, quais sejam a Ford e Chevrolet e seus também compactos.

Evolução do BR 800 e queda do fabricante

Em pleno cenário de impeachment presidencial, a fabricante nacional, tenta uma reação, lançando a versão restilizada e de linhas suaves do BR 800, qual se chamou Supermini, que mantinha para a Gurgel o título de marca com o menor carro, o que era comprovado por suas dimensões, sendo o cumprimento de 3,19.

A estrutura do novo modelo era bem reforçada e dinâmica favorável a sua utilização nos grandes centros, o que era possível por contar com entre eixos de 1,90m e direção amigável. O Supermini também trouxe algo que seria uma tendência anos depois, que a utilização de plástico nos automóveis, o que era demonstrado em sua carroceria que era desse material tipo FRP, qual possuía garantia de 100.000 km. Além da tradicional garantia de fábrica contra corrosão, a estrutura do veículo era montada sobre aço altamente seguro e desenhado, pensados para resistir à torção. Seu motor era o mesmo do seu precursor, ou seja, bicilíndrico porém 3 cv mais potente, contando com garantia de 30.000 km. Houve melhora também na suspensão, retirou-se os itens desta que eram fabricados pela Gurgel e optou-se por sistema de de braços transversais superpostos com mola helicoidal. Por sua vez a traseira era montada em conjunto de feixes de molas longitudinais. Seu consumo também era atrativo, fazia 14 km/l a 80km/h dentro da cidade, e alcançava 19 km/l na quarta marcha.

O sucessor do BR 800 também apresentava estética agradável, com duas portas, faróis quadrados, maior envidraçamento e grade da cor do veículo; todos para-choques deste modelo eram na cor prata. O dilema dos vidros também foi tratado, agora os dianteiros não eram mais de correr e muito menos havia quebra-ventos, e no novo modelo o porta malas ganhou uma tampa, qual aliada ao banco bipartido aumentava o conforto do acesso e espaço para bagagem. Na versão SL do modelo contava como item de série antena de teto, rádio/toca-fitas e faróis com lâmpadas halógenas, além de conta-giros. Tanta qualidade fez com que o modelo chegasse a marca de 1500 vendidos em junho de 1992.

Mas a fabricante nacional não parou por aí, vez mais um lançamento, dessa vez muito mais peculiar, que seria o Motomachine que aproveitou o motor do Supermini. A curiosidade do novo modelo é que o teto e as portas eram removíveis e em acrílico transparente, algo realmente inusitado, até mesmo pelos tempos atuais. É um veículo aplicado para o público urbano e transporte de rotina. O planejamento da Gurgel era em seguida lançar mais um carro popular que teria preço médio de US$ 5000 denominado Delta, porém, mesmo tendo comprado todo maquinário para dar andamento ao projeto, o mesmo não prosseguiu devido às dificuldades financeiras, gerada, principalmente pela chegada das concorrentes estrangeiras e acabou pedindo concordata em 1993, mas sem desistir totalmente, já que em 1994 pediu financiamento ao governo para recuperar-se, o que não consegui, o que fez com que definitivamente a empresa fechasse as portas.

Não há dúvidas que não faltou vontade nem persistência no engenheiro, cidadão e patriota João Gurgel. Este foi responsável pela industrialização do Brasil, o que até então era inexistente, fazendo do país um dependente de tudo, principalmente bens de consumo. Com a Gurgel o país pode ter o orgulho de ser uma nação com gente capaz de inovar, apta a criar e inovar. Esse fabricante apresentou com pioneirismo, em plena década de 80, tecnologias que até hoje não foram plenamente implantadas em nosso país, como o carro elétrico e veículos com partes plásticas para dar economia e leveza. Infelizmente sozinha essa lutadora nacional não conseguiu continuar na disputar pelos consumidores brasileiros e teve que abandonar a grande realização que foi a Gurgel e seu modelo BR 800, sem falar dos demais sucessos que sua fabricação. Talvez se naquela oportunidade o governo federal aplicasse tratamento fiscal diferenciado para fabricantes nacionais, com certeza isso não teria acontecido.

Entretanto, vale reforçar o legado deixado pelo grande engenheiro Gurgel que teve coragem de ousar e criou soluções em território nacional, jamais vistas por aqui antes. Ficou dele o ensinamento que nós brasileiros podemos sim ter nossa tecnologia e sermos independentes nas diversas ciências que nos rodeia, basta querermos nos aplicarmos. A reação de Gurgel ao criar sua fábrica é um protesto de quem não mais queria ver seu país refém de economias estrangeiras, lutou com suas forças e inteligência até o último momento. Com esse profissional aprendemos que podemos pensar, desenvolver produtos, soluções, técnicas como os países desenvolvidos fazem.

Sem dúvida o grande engenheiro João Gurgel deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota que infelizmente não conseguiu suportar sozinho a concorrência das grandes multinacionais, mas proporcionou uma era de lançamentos e automóveis respeitáveis, que em muitos aspectos suplantavam concorrentes estrangeiros.

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